Remédios somem da rede pública
Poucos fabricantes e desinteresse em fornecer ao poder público fazem medicamentos gratuitos desaparecer em hospitais e postos de saúde
Publicado em 16/10/2014 | Felippe Aníbal
INFOGRÁFICO: Veja os medicamentos que os municípios mais têm dificuldades de comprar
Essa dinâmica tem levado ao fracasso inúmeros processos licitatórios para a aquisição de medicamentos por parte de municípios e do estado. As últimas quatro licitações promovidas pelo Consórcio Paraná Saúde para compra de benzetacil naufragaram por falta de empresas interessadas em participar do certame. A aquisição de fenorbital (para controlar crises convulsivas) também tem esbarrado na falta de fornecedores.
“É o Brasil inteiro comprando os mesmos grupos de medicamentos. Muitas empresas preferem fugir do rigor das licitações e vender para o mercado privado”, aponta o diretor-executivo do Consórcio, Carlos Roberto Setti.
Pelo número insuficiente de empresas interessadas, a Secretaria de Saúde de Curitiba tem, periodicamente, enfrentado dificuldades para conseguir o metildopa (um dos indicados para tratamento de hipertensão arterial). Só neste ano, por exemplo, mais de 121,9 mil atendimentos de hipertensão foram feitos na cidade via Sistema Único de Saúde (SUS). A falta também altera a rotina dos pacientes.
“A indústria nem sequer quer competir [nas licitações]. Temos casos em que as distribuidoras que ganham não conseguem fornecer todo o volume licitado”, diz o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Titton.
Essa conjuntura também afeta a acetilcefuroxima (para infecções urinárias). Mais de 12,8 mil pessoas já foram atendidas em decorrência deste mal neste ano, em Curitiba. De acordo com a programação, a Secretaria de Saúde precisa comprar 5,5 mil comprimidos por mês. Na falta desse, as infecções são tratadas por outras classes de medicamentos.
Para tentar driblar a falta periódica de medicamentos, os entes públicos lançam mão de algumas estratégias. Municípios passaram a rever os volumes licitados e a redistribuir os produtos entre si. “Se um remédio falta em uma unidade e tem em outro, identificamos isso e fazemos a ponte”, exemplifica o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Titton.
A Farmácia Popular, programa federal desenvolvido em parceria com prefeituras, tem sido uma válvula de escape. Alguns dos medicamentos que faltam nos postos de saúde podem ser retirados gratuitamente nas Farmácias Populares, mediante a apresentação de receita médica e de documento. É a essas unidades que Ana Maria Ávila recorre quando o enalapril acaba no posto da Ouvidor Pardinho. “Ando algumas quadras e pego de graça numa dessas farmácias.”
Além disso, municípios e o estado têm incentivado o uso racional dos remédios que mais faltam, substituindo-os por outros que não comprometam o tratamento.
Além de pagar preços defasados pelos medicamentos, as licitações preveem sanções pesadas caso os distribuidores não entreguem o volume contratado: 0,5% do valor dos remédios não repassados, por dia. Mas os entes públicos têm tolerado atrasos e recorrido ao diálogo para conseguir o produto. “Não adianta cancelar a entrega, porque não consigo outro fornecedor. Procuramos negociar para receber”, diz Carlos Setti, do Consórcio Paraná Saúde.
Pelo menos 12 medicamentos estão na lista dos mais difíceis de encontrar pela Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba e pelo Consórcio Paraná Saúde, que adquire remédios da atenção básica para 394 municípios do estado. A falta esporádica de fármacos é como uma doença difícil de curar, porque está atrelada a uma dinâmica de mercado complicada que inclui raros fabricantes, poucos distribuidores interessados em fornecer ao poder público e dificuldades da indústria em importar insumos para a fabricação.
O impacto é difícil de ser dimensionado, mas as autoridades de saúde pública estimam que a cada mês centenas de milhares de atendimentos no Paraná sejam prejudicados pela falta de medicamentos. A escassez sazonal acomete drogas cujo fornecimento é obrigação tanto dos municípios como do estado e da União. “A produção nacional não está organizada de forma a atender a demanda”, assinala a diretora-técnica do Consórcio Paraná Saúde, Mônica Cavichiolo Grochocki.
Os desaparecidos
Um dos fármacos que de vez em quando desaparece das prateleiras dos postos de saúde é a benzilpenicilina benzatinia (benzetacil), antibacteriano indicado para o tratamento da sífilis, entre outras enfermidades. Só em Curitiba, há mais de 580 pessoas diagnosticadas com a doença (entre sífilis congênita, em gestantes ou geral). Quando o remédio falta, os pacientes têm o tratamento alterado.
Hoje, apenas um laboratório no país produz o benzetacil e não dá conta de fornecê-lo regularmente a todos os estados. “Quando se tem um mercado com um único fornecedor, acaba se criando um cenário propício ao desabastecimento. Dá a entender que a motivação da indústria está pouco alinhada à demanda da saúde”, avalia o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Monte Serrat Titton.
O problema se estende a vários medicamentos, segundo o Consórcio Paraná Saúde e as secretarias estadual e municipais de Saúde. Na rede estadual ou nos hospitais do estado, vez ou outra faltam remédios como clindamicina (indicada para infecções respiratórias e de pele), vancomicina (infecções bacterianas) e diltiazem (hipertensão), além do próprio benzetacil. Neste mês, faltou formoterol + budesonida, usado por pacientes com asma.
Editais geram círculo vicioso, diz indústria
Para a indústria farmacêutica, as regras das licitações realizadas pelo poder público para comprar remédios geram um círculo vicioso que acentua a falta desses itens em hospitais e postos de saúde. Os editais partem de preços em dólar. Segundo o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), os valores vêm sendo definidos com o dólar na casa de R$ 1,40 (cotação de 2011), quando hoje a moeda vale R$ 2,47.
“A indústria tem interesse em fabricar e vender, mas fica impraticável”, diz o presidente-executivo do Sindusfarma, Nelson Mussolini. Ele destaca ainda que as licitações preveem a participação do distribuidor, não do fabricante. Dessa forma, a distribuidora concorre mesmo sem ter garantias de que vai conseguir entregar os produtos.
“Os distribuidores entram nas licitações sem ter nem sequer uma carta da indústria que garanta o fornecimento. Por isso, mesmo que a licitação seja concluída não há garantias de que o produto vá chegar ao comprador”, diz Mussolini. “Precisaríamos mudar a estrutura dos editais. Os preços defasados e essa lógica em que as empresas vendem e depois vão buscar produto [para entregar] gera um círculo vicioso difícil de ser superado.”
Licitações fracassam por desinteresse
O sumiço de alguns medicamentos das prateleiras dos postos de saúde pode ser explicado por uma lógica simples. Os remédios que mais faltam são produzidos por um número restrito de indústrias (o benzetacil, por exemplo, tem um único fabricante no país), que não dão conta de abastecer todo o mercado nacional. Por outro lado, as exigências da legislação para fornecer ao poder público têm afugentado os distribuidores.Essa dinâmica tem levado ao fracasso inúmeros processos licitatórios para a aquisição de medicamentos por parte de municípios e do estado. As últimas quatro licitações promovidas pelo Consórcio Paraná Saúde para compra de benzetacil naufragaram por falta de empresas interessadas em participar do certame. A aquisição de fenorbital (para controlar crises convulsivas) também tem esbarrado na falta de fornecedores.
“É o Brasil inteiro comprando os mesmos grupos de medicamentos. Muitas empresas preferem fugir do rigor das licitações e vender para o mercado privado”, aponta o diretor-executivo do Consórcio, Carlos Roberto Setti.
Pelo número insuficiente de empresas interessadas, a Secretaria de Saúde de Curitiba tem, periodicamente, enfrentado dificuldades para conseguir o metildopa (um dos indicados para tratamento de hipertensão arterial). Só neste ano, por exemplo, mais de 121,9 mil atendimentos de hipertensão foram feitos na cidade via Sistema Único de Saúde (SUS). A falta também altera a rotina dos pacientes.
“A indústria nem sequer quer competir [nas licitações]. Temos casos em que as distribuidoras que ganham não conseguem fornecer todo o volume licitado”, diz o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Titton.
Essa conjuntura também afeta a acetilcefuroxima (para infecções urinárias). Mais de 12,8 mil pessoas já foram atendidas em decorrência deste mal neste ano, em Curitiba. De acordo com a programação, a Secretaria de Saúde precisa comprar 5,5 mil comprimidos por mês. Na falta desse, as infecções são tratadas por outras classes de medicamentos.
Alternativas
Entes públicos tentam “remediar” a escassezPara tentar driblar a falta periódica de medicamentos, os entes públicos lançam mão de algumas estratégias. Municípios passaram a rever os volumes licitados e a redistribuir os produtos entre si. “Se um remédio falta em uma unidade e tem em outro, identificamos isso e fazemos a ponte”, exemplifica o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Titton.
A Farmácia Popular, programa federal desenvolvido em parceria com prefeituras, tem sido uma válvula de escape. Alguns dos medicamentos que faltam nos postos de saúde podem ser retirados gratuitamente nas Farmácias Populares, mediante a apresentação de receita médica e de documento. É a essas unidades que Ana Maria Ávila recorre quando o enalapril acaba no posto da Ouvidor Pardinho. “Ando algumas quadras e pego de graça numa dessas farmácias.”
Além disso, municípios e o estado têm incentivado o uso racional dos remédios que mais faltam, substituindo-os por outros que não comprometam o tratamento.
Além de pagar preços defasados pelos medicamentos, as licitações preveem sanções pesadas caso os distribuidores não entreguem o volume contratado: 0,5% do valor dos remédios não repassados, por dia. Mas os entes públicos têm tolerado atrasos e recorrido ao diálogo para conseguir o produto. “Não adianta cancelar a entrega, porque não consigo outro fornecedor. Procuramos negociar para receber”, diz Carlos Setti, do Consórcio Paraná Saúde.
O impacto é difícil de ser dimensionado, mas as autoridades de saúde pública estimam que a cada mês centenas de milhares de atendimentos no Paraná sejam prejudicados pela falta de medicamentos. A escassez sazonal acomete drogas cujo fornecimento é obrigação tanto dos municípios como do estado e da União. “A produção nacional não está organizada de forma a atender a demanda”, assinala a diretora-técnica do Consórcio Paraná Saúde, Mônica Cavichiolo Grochocki.
Os desaparecidos
Um dos fármacos que de vez em quando desaparece das prateleiras dos postos de saúde é a benzilpenicilina benzatinia (benzetacil), antibacteriano indicado para o tratamento da sífilis, entre outras enfermidades. Só em Curitiba, há mais de 580 pessoas diagnosticadas com a doença (entre sífilis congênita, em gestantes ou geral). Quando o remédio falta, os pacientes têm o tratamento alterado.
Hoje, apenas um laboratório no país produz o benzetacil e não dá conta de fornecê-lo regularmente a todos os estados. “Quando se tem um mercado com um único fornecedor, acaba se criando um cenário propício ao desabastecimento. Dá a entender que a motivação da indústria está pouco alinhada à demanda da saúde”, avalia o superintendente da Secretaria de Saúde de Curitiba, César Monte Serrat Titton.
O problema se estende a vários medicamentos, segundo o Consórcio Paraná Saúde e as secretarias estadual e municipais de Saúde. Na rede estadual ou nos hospitais do estado, vez ou outra faltam remédios como clindamicina (indicada para infecções respiratórias e de pele), vancomicina (infecções bacterianas) e diltiazem (hipertensão), além do próprio benzetacil. Neste mês, faltou formoterol + budesonida, usado por pacientes com asma.
Editais geram círculo vicioso, diz indústria
Para a indústria farmacêutica, as regras das licitações realizadas pelo poder público para comprar remédios geram um círculo vicioso que acentua a falta desses itens em hospitais e postos de saúde. Os editais partem de preços em dólar. Segundo o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), os valores vêm sendo definidos com o dólar na casa de R$ 1,40 (cotação de 2011), quando hoje a moeda vale R$ 2,47.
“A indústria tem interesse em fabricar e vender, mas fica impraticável”, diz o presidente-executivo do Sindusfarma, Nelson Mussolini. Ele destaca ainda que as licitações preveem a participação do distribuidor, não do fabricante. Dessa forma, a distribuidora concorre mesmo sem ter garantias de que vai conseguir entregar os produtos.
“Os distribuidores entram nas licitações sem ter nem sequer uma carta da indústria que garanta o fornecimento. Por isso, mesmo que a licitação seja concluída não há garantias de que o produto vá chegar ao comprador”, diz Mussolini. “Precisaríamos mudar a estrutura dos editais. Os preços defasados e essa lógica em que as empresas vendem e depois vão buscar produto [para entregar] gera um círculo vicioso difícil de ser superado.”
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