sábado, 4 de outubro de 2014

COMPORTAMENTO - Caravana das solitudes - GAZETADOPOVO.COM.BR VEICULOU

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Edward Hopper/Reprodução
Edward Hopper/Reprodução / Falcões da Noite (1942), de Edward Hopper: a solidão e a falta de saídas das cidades Falcões da Noite (1942), de Edward Hopper: a solidão e a falta de saídas das cidades
Comportamento

Caravana das solitudes

Maior liberdade de escolhas afetivas, o individualismo em seus aspectos narcisistas e a descartabilidade dos relacionamentos atuais estão entre os motivos que levam as pessoas a viverem sozinhas
Publicado em 04/10/2014 |    Poucos compositores se debruçaram sobre a condição do indivíduo desacompanhado diante do mundo, e de modo tão pungente, como Nelson Cavaquinho (1911-1986). Com sua voz de taquara rachada – palavras do próprio – ele dizia: Sempre só/ Eu vivo procurando alguém/ Que sofra como eu também/ E não consigo encontrar ninguém. Mas ele, “no teatro sem cor, onde estou desempenhando o papel de palhaço do amor”, não compôs “Luz Negra” sozinho: a canção é uma parceria com o atualmente desconhecido sambista Amâncio Cardoso. O poeta-vocal belga Jacques Brel (1929-1978), em uma célebre entrevista ao jornalista Jean Clouzet, em 1964, sobre a sua atração pela solidão, arrematou: “Viver só é um projeto que realizarei certamente um dia. Não se trata de um desejo de solidão absoluta. Quero viver retirado, mas não como eremita. Agirei desse modo para afastar um certo número de equívocos que me destroem aos poucos. Aliás, estou convencido de que atualmente estou só. Portanto, mais vale parar de uma vez com esta palhaçada que consiste em tentar desesperadamente não o estar, visto que, na realidade, estou profundamente só”. 
Seu coro de não-acolhimento pode ter mais devotos. Segundo dados recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem 77 milhões de solteiros, o que corresponderia ao expressivo quórum de 49% da população acima de 15 anos. E a proporção de casais “oficiais” só faz diminuir. De 2012 para 2013, o total de casados passou de 61,1 milhões para 60,4 milhões – uma redução de cerca de 720 mil. Nota: a região Sul é a que tem menos solteiros: 44,2%. “Vivíamos a cultura do casamento. Hoje em dia, o casamento é contingencial e a satisfação pessoal suplantou a obediência às tradições. Vivemos a era do divórcio”, afirma Lígia Baruch, mestre em Psicologia Clínica pela PUC (SP).
Vida de Solteiro
Saiba mais sobre obras que tratam do tema solidão:
Os Sofrimentos do Jovem Werther
Wolfgang von Goethe
Obra-chave para entender os ideais do Romantismo, escrita em 1774, por um escritor que mal tinha completado seus 25 anos. Um jovem sensível (em demasia) se apaixona por uma mulher comprometida.
Amor Líquido: sobre a Fragilidade dos Laços Humanos
Zygmunt Bauman
O sociólogo polonês radiografou, em 2004, as desventuras dos relacionamentos humanos nesta modernidade líquida toda. Esquecendo um pouco o estilo meio messiânico do autor, uma importante reflexão sobre o sabor dos tempos.
Jacques Brel: Antologia Poética
Jacques Brel
De 1987, é um comovente catálogo de histórias e letras de um dos maiores poetas e intérpretes do século 20. Sua relação conflituosa com os temas amorosos rende boas reflexões sobre o amor, a solidão e a bebida.
Quando Eu Me Chamar Saudade
Nelson Cavaquinho
Reunião das principais composições do canônico sambista carioca, de 1996. Destaques para “Flor e O Espinho” (“Tire o seu sorriso do caminho...”) e “Folhas Secas”.
O sentimento de solidão e desgosto pela vida, pintado em verso e prosa – a sensação, nestes dois primeiros casos, de se julgar num circo onde todos riem de sua condição, e a literatura, num plano maior, como via magna de representação das profundezas humanas – sempre nos permeou, ainda mais se considerarmos as pressões sociais por estabilidade afetiva e comunhão. Das peças trágicas de Shakespeare – Romeu e Julieta morreram por forças familiares – ao ultradramático Goethe de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de 1774, obra considerada precursora do Romantismo e do ideal (sofrido) da completude através do outro – à época, o livro chegou a ser proibido em certas regiões da Europa por conta da onda de suicídios, à moda da morte meio burra do personagem central, que varreu o Velho Mundo após a publicação –, muito se discutiu sobre os (des)caminhos amorosos. Mas há, ao mesmo tempo, visões menos drásticas, como em “Segue Teu Destino”, de Ricardo Reis/Fernando Pessoa. “A realidade/ Sempre é mais ou menos/ Do que nós queremos./ Só nós somos sempre/ Iguais a nós-próprios./ Suave é viver só”. Sobre esta solidão escolhida, há um aforismo maldoso do escritor e crítico literário paulista Mário da Silva Brito: “Os solitários amam a solidão porque a povoam de si mesmos”.
Entre a incomunicação do amor e a escolha pura de não partilha, soma-se outro fator, que mexe nas noções de sozinho-acompanhado: a mudança na construção social dos relacionamentos contemporâneos. É notório que cada vez mais uniões estáveis se estabelecem sem registro oficial, o que, em si, já reconfigura os índices de solteirice, pois, geralmente, as pesquisas desconsideram os casais “informais”. “As relações atuais são mais fluidas, menos convencionais e mais difíceis de serem nomeadas. Mais pessoas preferem se denominar solteiras mesmo vivendo algum tipo de relacionamento”, alega Lígia. A maior liberdade de escolhas afetivas também reflete uma mudança de leis e costumes. “Há poucas décadas, homossexuais sofriam tratamentos similares à tortura em hospitais psiquiátricos. No Brasil, apenas em 1977 o divórcio virou um direito, embora com ressalvas. Temos menos imposições”, avalia Jarid Arraes, psicóloga cearense especialista em feminismo e direitos humanos.
Para além da esterilidade estatística, há muitas maneiras de estar só e ser só, condição sui generis que a língua portuguesa causa, diferentemente da língua inglesa, por exemplo, em que um único verbo assinala características duradouras tanto quanto estados transitórios: haveria, então, o estar sozinho de fato, distante do convívio afetivo com outras pessoas; a solidão ontológica, de ser-se único e indivisível; a solidão do não-pertencimento, chamada de solidão serontológica – própria do ser enquanto ser –, isso de sentir-se só mesmo envolto de pessoas às quais se distribuiria afeto, sintoma este muitas vezes relacionado à depressão; a solidão da ausência do outro, possível resultado de carências afetivas, sociais e/ou físicas, reais ou percebidas; e, por fim, a desvinculação de relacionamentos em longo prazo e a fuga de compromissos estáveis. Contudo, há muito mais coisas entre o céu e o chão dos relacionamentos contemporâneos. Esqueçamos, por ora, inclusive, a possibilidade da solidão a dois.
Suave é a noite
Se Thoreau, de A Desobe­­diência Civil, dizia nunca ter encontrado companheiro mais sociável que a solidão, muitos teóricos comportamentais enxergam em tudo isso uma crise de valores. O individualismo, em seus aspectos narcisistas, apareceria como sintoma das sociedades ocidentais modernas: vazias e precárias de significado. Em Solidão: uma Abordagem Interdisciplinar pela Ótica da Teologia Bíblica Reformada, Antônio Máspoli de Araújo Gomes, pesquisador do Laboratório de Psicologia Social e Estudos da Religião da USP, afirma que a solidão gera comportamentos de compensação ligados ao consumo, tais como comprar e comer. “Trata-se de ingerir, de se completar, de tentar preencher o que falta, ou o vazio, gênese da baixa autoestima de um mundo individualista que dá lugar à solidão”. No mesmo caminho, um pouco mais apocalíptico, a socióloga e sexóloga Maria Helena Matarazzi, em Os Mitos da Revolução Sexual, culpa a promiscuidade de nossos dias pelo estado atual do universo. “A troca sistemática de parceiros pode esconder uma comunicação humana de muito desespero e solidão, tornando a busca do encontro sexual uma necessidade obsessiva de alimento contra o vazio, no que denomina ‘os viciados em amor’, gerando a robotização da sexualidade com graves prejuízos emocionais.”
Lígia reconhece apenas parcialmente essa defesa das tradições. “O mundo de hoje exige relações mais igualitárias. A sociedade não condena mais o divórcio, o que é um avanço, mas algumas religiões ainda condenam. Por outro lado, sabemos que partilhar uma mesma crença espiritual favorece a manutenção de casamentos e traz valores positivos, como a paciência, a tolerância e a compaixão”. Em uma zona de interstício, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em Amor Líquido: sobre a Fragilidade dos Laços Humanos, destaca o padrão da descartabilidade e virtualidade das coisas: estar num relacionamento depreende envolvimento e incerteza permanente. Para Bia Del Picchia, pesquisadora de Mitologia e pós-graduada em Psicologia Junguiana, a rapidez com que se fazem e se rompem relacionamentos suscita o descompromisso e o medo da entrega. “Ninguém nunca é bom o suficiente; pensa-se que se pode achar outro melhor, como se fosse uma mercadoria. Essa frieza pode provocar o oposto: quando finalmente se entrega, a pessoa dependura-se emocionalmente no parceiro, perdendo a si mesma e sufocando o outro. É um lado sombrio dos relacionamentos atuais. Do lado luminoso, a chance de ser feliz, amar e apostar numa relação que pode ser constantemente redescoberta e reinventada”, pondera.
Escolhas
É evidente que saindo do aspecto do eu-maior, a questão toda passa inevitavelmente pelo aspecto estrutural da sociedade. “Já passamos por muitas fases políticas, onde movimentos sociais batalharam por muitas causas. Isso gerou e gera resultados, como a ressignificação dos relacionamentos entre os indivíduos. Muitas pessoas não se sentem mais contempladas por modelos tradicionais de relacionamento. Gerações mais antigas seguiam as tradições também por falta de escolhas”, assevera Bia. Os conflitos geracionais não anulam a influência das tradições e têm como principal fator a criação de um certo mal-estar constitutivo de se sentir fora dos padrões. “O ideal de amor romântico e heteronormativo é muito prejudicial socialmente, pois cria ilusões e impõe obrigações aos relacionamentos que dificilmente são consolidadas pelas pessoas. Não é problema algum desejar relacionamentos monogâmicos, casamento e filhos. Mas é primordial que esses fatores sejam, de fato, escolhas. Sem imposições, as pessoas são felizes em seus relacionamentos”, completa. Para Bia, a contemporaneidade também contribui nas pressões cotidianas e sentimentais. “Um dos efeitos perversos da aceleração do dia a dia é a compulsão de se estar ligado a um estímulo o tempo todo. Ficamos viciados nisso, e, no entanto, a solidão e o silêncio são saudáveis e indispensáveis. É preciso espaço e vazio para que haja criação e comunicação entre as pessoas. Precisamos da luz e da sombra”, completa.
De luz e sombras, os gregos entendiam. Na velha mitologia, Baucis e Philemon foram recompensados por terem dado guarita a Zeus e Hermes durante alguma confusão séria. Na velhice, os deuses realizaram o pedido do casal: que morressem ao mesmo tempo, se transformassem em árvores e ficassem lado a lado para sempre. Aos budistas, a condição de transcendência de Sidartha Gautama, o Buda, somente foi possível por conta de seu retiro espiritual solitário. “Os relacionamentos não precisam mais estar atrelados a outras coisas além deles mesmos. Não precisamos mais estar com alguém para ter as contas pagas, pertencer à sociedade, ser ‘normal’, ter filhos. Podemos escolher um parceiro ou não escolher. Claro que há setores conservadores que se opõem a essas mudanças, mas acho que vivemos uma época estimulante”, completa Bia. E se suave é a noite e viver, como dizia Guimarães Rosa, é algo muito perigoso, pode ser que Nabokov esteja certo e a nossa existência não passe de um curto circuito de luz entre duas eternidades de escuridão.

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